Encontrar conceito do trítono também me fez encontrar a forma do livro, com três grandes narrativas, dispostas como uma espécie de programa de concerto, intercalando dissonância e consonância. Um jogo que culmina no trítono – o intervalo mais dissonante, em música – para depois voltar ao tom inicial do livro-delírio.
Pensando na importância da música nesse livro, compartilho uma sequência narrativa/musical, com as peças tocadas por Demian, o pianista do segundo conto, e os trechos correspondentes aos instantes em que elas soam dentro do conto. Basta assistir à playlist abaixo, criada no Youtube, e ler o trecho selecionado.
Saciados do comer e do beber, cada um segundo sua fome, a mulher, após agradecer-lhe, perguntou se ele poderia tocar um pouco para ela. Ele sorriu e perguntou de seus gostos. Mais uma vez ela se esquivou de dar direção a qualquer coisa que fosse. Disse que queria ouvir coisas às quais não estivesse habituada, quase como se desejasse, sem o saber, refundar seu campo da escuta.
Demian sentou-se ao piano. Anunciou que iria tocar duas músicas de Eric Satie. Começaria por uma chamada Gymnospédie n° 1, nome derivado de um antigo ritual grego ao deus Apolo, em que jovens dançavam nus ao som de flauta e lira. Ela esperava um som insano, como aquele que invadiu seus ouvidos enquanto escutava as músicas judaicas. No entanto, do piano de cauda saiu um som lento, grave, suave, quase doloroso. Mas também agradável como uma luz leitosa de fim de tarde. Enquanto ele tocava, ela fechou as cortinas da sala, até chegar na luminância que sua mente imaginou para a música. Lenta e grave, tirou toda a roupa e começou a dançar, completamente nua, sobre o suave tapete da sala, até deitar-se nele, para ouvir os últimos acordes de olhos fechados.
Ela não acreditava que estava ali deitada, nua, na sala de um estranho, ouvindo aquela música que a furtava do presente e remetia à eternidade. Após ouvir o último acorde, sentiu uma imensa vontade de chorar. Um choro sem nome, sem sentimento. Mas não teve tempo. Ainda de olhos fechados, ouviu um barulho inominado. Abriu os olhos e viu o tampo das cordas fechado. Demian já estava praticamente ao seu lado. Levantou-a em seus braços, enquanto dizia que ela teria uma experiência de audição diversa. A ideia lhe havia surgido graças ao nome da próxima música de Satie que ele tocaria: Gnossienne nº 1, palavra provavelmente derivada de gnosis, inventada pelo compositor para nomear uma sequência de sete peças.
E o que ela experimentou foi uma nova forma de conhecer. Aquele quase deus da música deitou-a com rara delicadeza sobre o piano, com a cabeça virada para as cordas graves. Estava deitada como um horizonte ofertado aos olhos do pianista. Ela olhou os ornamentos do teto e ruborizou pensando que ele iria divisar detalhes de seu corpo que ela mesma indistinguia. Com sua voz aveludada, como se acariciasse seus ouvidos com o silêncio que mora nas entranhas de cada som, Demian pediu que ela fechasse os olhos e apenas mirasse o dentro de si. E se deixasse levar pelo imaginado, pela trama sonora e abstrata das músicas que iria tocar.
Alguns breves instantes silentes se seguiram após a mulher do apartamento 11 ter fechado os olhos. Sentiu-se esvaziar de todo, estimulada pelo silêncio e pela escuridão de suas pálpebras. Antes que formulasse pensamento, sentiu a primeira nota grave da música ressonando em seu tronco. Os arpejos passeavam pela longitude de seu corpo. Sentia-se capaz de distinguir a complexa estrutura das ondas sonoras que vibravam, também dentro dela. Diferençava timbres e alturas, pulsos e amplitudes, harmonia e melodia. Estremeceu assim que um fortíssimo fez reverberar todo o seu ente. Foi invadida, penetrada pelo som. Seu ventre se contraiu ao sabor da imaginação. Sentiu-se tocada pela mão forte e macia daquele homem, que fazia vibrar o corpo de madeira do piano que percutia em seu corpo. Imaginava, excitava-se, exercitava-se em silêncios.
Não sabia mais onde estava, quando ouviu as últimas notas daquela música ressonando ao longe e dentro. Ouviu uma voz que parecia sussurrar o nome de Chopin, acompanhado das palavras Estudo, dó, menor, Révolutionnaire, Noturno, mi e bemol. Aquilo parecia alguma poesia mística, cujos sentidos exatos ela não compreendia. Súbito, foi percorrida dos pés à cabeça por escalas rápidas e voragens arpejadas no seu corpo pelo corpo vibrante do instrumento. Aos poucos, uma melodia começou a se destacar, repetindo-se num registro agudo e noutro mais grave, levando-a a sobrevoar um campo muito verde montada num cavalo negro. Não entendeu a imagem. Aquele verde absoluto, com um veio d’água ao centro, sendo visto de cima. Ela, quase tocando nuvens… Aos poucos, os caminhos foram escurecendo, assim como a música, que parecia morrer lentamente, até uma nova escala descendente fazê-la estremecer. Dois acordes finais, graves, vibraram em seu peito.
Em alguns instantes de silêncio, percebeu-se ofegante. Quis abrir os olhos. Mas antes que o fizesse, uma melodia muito triste a invadiu. Ela já a tinha ouvido, mas nunca havia sentido sua imensidão. Invadida por aquele Noturno, não conteve as lágrimas. Chorou a alegria triste trazida por aquele som. Aquilo era um sentimento bom e nostálgico. Sentia saudade de coisas que sequer supunha existir. Seu ventre ainda se contraía, mas não apenas por gozo. Era também o pranto trazido pela paisagem sonora que estava dentro de si. Pela primeira vez em sua vida ela entendeu que tudo o que há vibra, desde a mais densa matéria até os raios cósmicos mais imperceptíveis. Chorava a pequenez de sua existência, diante de tanta amplidão… Era o que sinalizavam os compassos finais daquele Noturno, que ela já tinha ouvido outras vezes várias, numa escuta indistinta, abafada em meio a tanto ruído.
O silêncio após aquele noturno foi um pouco maior. Atrás do silêncio, um tênue ruído branco, grávido das possibilidades do som, escapava de todos os cantos da vida. Ouvia os próprios soluços, a própria respiração ofegante, o ranger do banco em que Demian estava sentado, passos no apartamento vizinho, o elevador em movimento… Ruídos ainda mais débeis ela conseguia perceber, como o barulho da geladeira, que vinha da cozinha, ou um murmúrio indistinto, que vinha da rua.
Domando o caos sonoro em que estava imersa, a voz quase sussurrante daquele homem mil vezes desejável suspendeu o instante, pronunciando coisas meio indistintas, sem um sentido fixo. Variação 18, rapsódia, Paganini… ou seria Rachmaninov? Juntos? Sentiu um arpejado muito suave, pianíssimo, percorrer-lhe as vértebras. De repente… sim, conhecia aquela música. Num longo hausto, compreendeu a amplitude daquilo, como que intuindo a beleza reversa de uma melodia espelhada nas entranhas daquela que agora ouvia. Provavelmente, já fora tema de filme. Sim, em algum lugar, no passado, ouvira aquela melodia. Antes, parecia-lhe o extremo de uma tristeza. Agora não. Trazia-lhe uma bem-aventurança, uma bem-avinda plenitude. Aquilo se elevava, se elevava, se elevava… indefinidamente. Quando não cabia mais em si, a música fez um diminuendo e adentrou de novo na melodia, levemente modificada. E tudo isso se conduziu a um acorde final que ficou vibrando dentro dela durante o silêncio de alguns pulsos.
A voz daquele homem que não se cansava de extasiá-la anunciou então dois prelúdios de Chopin. Um, em mi menor; outro, em ré menor. Já nos primeiros compassos, um choro incontido brotou, fazendo cair grossas lágrimas no corpo de madeira daquele piano. Chopin novamente? Como era triste, como era doído esse piano de Chopin! De repente, a melodia pareceu sufocar. Sufocá-la. Sentiu-se a chama de uma vela que é tampada por um pote. Pouco a pouco, o oxigênio vai embora e seu brilho vai apagando, apagando, até, num suspiro sufocante… morrer.
Só nos breves segundos de silêncio ela percebeu haver perdido a respiração. De repente, sentiu como que um jorro de notas percorrer-lhe o corpo. Toda umidade existida nele pareceu evidenciar-se para ela. Só ali relembrou que estava nua. Sentia um frio delicioso, como se estivesse em meio a uma tempestade de sons e sentidos. Parecia correr numa floresta tropical. Desejava Demian perdido na umidade de suas matas. Aquele Chopin era violento e terminava violento. Os graves do piano ressonavam todos em suas costas. Abriu os olhos e viu o teto ornado de pássaros e notas. Olhou, rápida e fugaz, para o pianista que, de olhos fechados, sorvia o soar daquele último acorde, repetido uma segunda vez. Fechou novamente os olhos e mudou, ligeiramente, de posição. Já não sabia precisar se o frio ou o calor fazia seu corpo arrepiar-se. Ou se era o terceiro ressoar daquele acorde que concluía, como um trovão, a fúria de uma tempestade feita de notas jorradas dos dedos daquele homem.
Aqueles três acordes ainda ecoavam dentro de si, quando ouviu as palavras Bach, fuga, cromática, ré e menor. Uma melodia simples apareceu sobre a fusão que eram seu corpo e o corpo negro, de madeira, daquele piano. Soavam quase infantis aquelas notas. Tinham gosto de pão quente com manteiga, café com leite, bolo e entardecer. Ressonavam como o cheiro dos brinquedos de meninice. Saltitantes. Sem que se esperasse, aquela melodia mudava de lugar. Como numa brincadeira de pique, alternavam-se outras melodias, polifônicas. Não era possível distinguir figura melódica de fundo harmônico. Às vezes a melodia se escondia em outros recantos do som e voltava, travessa. Carrosséis, abraços de mãe e pequenos tesouros guardados num baú pareciam voltar, evocados por aquela fantasia de Bach. Vinham e se punham em fuga, para dar lugar a outras fantasias, outras lembranças.
Ela não sabia novamente onde estava. Sorria. Aos poucos, começou a se sentir adolescente. As brincadeiras evocadas foram perdendo a inocência. Lembrou-se de desejos e amores eternos que ficaram cristalizados no tempo. Sorria ainda mais, sem sentir nem saber onde o real habitava. Aquela sonoridade vibrando em seu corpo despertava muitas memórias, vividas e imaginadas. Quando o ritmo da música prenunciou o último arpejo e os últimos acordes, recobrou a consciência de quem realmente era. Era ainda aquela menina que fora, crescida e incrivelmente só. A solidão da última nota grave, soando vários tempos, falava-lhe que o sozinho de cada ser é o fundamento de seu sentir. Seu íntimo exultava por conhecer e reconhecer-se através da música.
Ao fim da reverberação da última nota, ecoando mais dentro de si e de seu corpo-piano do que no aéreo espaço das ondas sonoras, seguiu-se um hiato preenchido com imensos silêncios. Foi um tempo suficiente para manter suspensos os cinco sentidos daquela mulher, mas exíguo para exigir-lhe qualquer coisa além da fruição do instante. Bastava-lhe sorver a matéria-prima de todo som em reverência extática, estética, estésica ao som há pouco extinto. Bastava-lhe a recordação sonora em todas as instâncias de seu corpo, das profundas lembranças à epiderme.
(Do livro “Trítonos – intervalos do delírio“, páginas 62 a 67)