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Posts Tagged ‘Lewis Carroll’

O que é cair no contramundo, no intervalo falho entre o sonho e a memória? Por mais que sejamos feitos dessa sútil matéria de que são feitos os sonhos, o mundo onírico nos desconcerta.

Alice faz parte desse mundo, com sua dose extrema de espanto e desconcerto. Essa personagem sempre me deslumbrou. Habitou três dos meus poemas. Revelou-me que o excesso de lógica pode fundar o nonsense. E que a origem do universo infantil é mais complexa e sombria do que o senso-comum consegue supor. Foi a primeira vez que, com grande assombro, me dei conta disso.

Ontem vi a Alice de Tim Burton. Sua estética sabe dar corpo a essa matéria de que são feitos os sonhos e as gentes. Suas mudanças na história soam como uma continuação natural do universo de Lewis Carroll. Meus pequenos senões com o final do filme não desmerecem a imensidão do que ele é.

Despeço-me, deixando aqui os três poemas meus sobre Alice, escritos entre 1998 e 2001. E lembrando que Alice vem de aletheia, palavra grega para verdade. Mas a verdade, nessa concepção, está ligada à memória, pois ela é a negação do esquecimento (Lethes era, para os gregos, o rio do esquecimento). Sua formação está ligada, por oposição, a ele, e não a pseûdos (o falso).

Por isso, talvez, as reminiscências de Alice sejam mais verdadeiras do que os fatos…

A l i c e   n o   P a í s   d o s   A l c a l ó i d e s

Liquens lisérgicos
e lírios loucos
correm nus no país
de Alice,
onde o coelho se atrasa
e o chapeleiro é maluco.

Tudo se funde
e se solta
num eterno big-bang.
Cabeças se chocam
como asteróides
no espaço sideral.

Alice vasculha o mundo
que existe atrás do ar
e, ao pôr seu vestido
de cetim branco,
acaba descobrindo que sempre esteve
olhando para a sua xícara de chá.

 

T a r d i a   r e s p o s t a   a   A l i c e
(para Eleonora Fabião)

Eu? Eu sou feito de luz.
Lembras que olhaste em meus olhos,
fizeste-me esta pergunta
e alguém respondeu por mim?
“Você é feito de quê?”

Nós somos feitos de luz.
Alice é feita de sonhos,
de árvores e de bosques;
de segredos que ela guarda.
Alice é de outra matéria.

Matéria é silvo de luz.
Alice é choro e questão
e energia. Ela é sistema,
prima-rima de um poema,
naipes rolados no chão.

Pôr… ou não pôr o chapéu?
Controlar sempre o relógio?
Dançar hermeta canção?
Sonhar com os olhos do céu?
Cores são formas de luz?

Quando o café da manhã
calhava de se atrasar,
eu chegava a acreditar
em seis coisas impossíveis.
Tudo é possível à luz.

Extraindo a magnitude,
raiz do alicerce — Alice —
questiona minha saúde:
“Você é feito de quê?”
Eu? Eu sou feito de luz…

 

A l i c e   A t r a v é s   d o   E s p e l h o
(ao Armazém Companhia de Teatro)

mote
Eu escrevo este poema
que me imortalizará
por um dia tê-la visto.

Ser o público e a cena
de seus sonhos me será
doce gozo que conquisto.

glosa

Em pensaventos lesmos e espelhares,
Alice alopra os alcalóides anos
nadinocentes, vivos, sempre insanos,
latentes como o brilho dos pulsares.

Volupiadas velhas, sorrateiras
aquecem a epiderme da menina,
da infante nada infântica que nina
os desejos matreiros das soleiras.

Nosso primeiro e estranho anfitrião,
Chapeluco Maleiro e já caduco,
pregado num relógio feito um cuco
ri o riso dos loucos com razão.

Tomo um xeque, um chá-mate e enfim adentro
no espelho-tobogã atrás de Alice,
alicerce dos sonhos, do que eu visse
neste mundo fantástico e epicentro.

Eu vejo um labirinto no armazém,
num impudico, lúdico vestido
em que, no olhar mais lúcido, elucido
todas transparessências que ele tem.

Um gato trapezista, num sorrir,
instaura nos sentidos todo absurdo
comportável no meu sentir já surdo,
pois os seus lábios deixam o rosto ir!

No tabuleiro, a injusticeira manda,
a Rainha das copas e das taras.
Ela corta cabeças pouco caras
nas horas que a demência faz-se branda.

No justíbulo faz-se o julgamento
que desnuda as segundas intenções.
No júri vejo os condes e os barões
feitos nobres num doido desmomento.

No final desta noite ou deste dia,
saciado de amor, eu durmo cedo
neste hospício que espalha todo o medo
da certeza que o mundo o imitaria.

(Aplausos!)

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