Diante da força de um escrito, em algumas condições nos esquecemos de que quem escreve o faz a partir do lugar que ocupa no mundo. A aristocracia periférica de um Jorge Luis (Borges), escritor ao mesmo tempo europeu e argentino; o provincianismo de um menino de Cordisburgo chamado João (Guimarães Rosa), capaz de colocar muita filosofia na boca de seus personagens sertanejos; e a origem negra de um certo Joaquim Maria (Machado de Assis), cuja cor foi desbotada nos livros de história da literatura, importam menos, quando eles são lidos, do que a chamada “grandeza universal” de suas obras. Mesmo quando elas têm cores essencialmente regionais.
O mesmo não ocorre com quem não pode ter seus traços tão facilmente apagados na estrutura da sociedade. A cor de um Afonso Henrique (de Lima Barreto), a sexualidade de um Caio (Fernando Abreu), o gênero de uma Cecília (Meireles) ensejam muito frequentemente debates sobre o lugar que ocupam e a partir do qual escrevem. Por quê?
Parece-me muito evidente que a literatura escrita por homens cisgêneros, brancos (ou embranquecidos) e heterossexuais é recebida como literatura universal. E o que é escrito por mulheres, por transexuais, por gays ou por negros, o que seria? Se, por um lado, a análise a partir do lugar de enunciação de quem escreve só costuma valer para quem ocupa lugares periféricos na própria periferia do capitalismo que é o nosso país, por outro marca um ato de resistência, ao demonstrar que a humanidade se engendra, complexa e plural, em todos, e que existem vozes imensas relegadas a um absurdo silêncio.
O livro “Olhos d’Água”, de Conceição Evaristo, pode ser visto como uma realização estética dessa resistência, ao ressoar a voz de uma multidão habitualmente silenciada. Uma multidão de mulheres negras e de filhos dessas mulheres. O que ouvimos é a sua humanidade, e não a voz de um esteriótipo engessado, de um personagem-tipo cobaia de teses sociológicas.
Antes que o leitor enverede por qualquer história, a primeira frase da Introdução à obra, escrita por Jurema Werneck, já adverte que “A mulher negra tem muitas formas de estar no mundo (todos têm).” Parece óbvio, mas alguns de nós temos o privilégio de nos esquecemos disso com assustadora frequência, porque podemos apagar a própria existência dessas mulheres. No entanto, a literatura de Conceição Evaristo é um grito de resistência que nos recorda desse fato e dessas vidas.
Com um realismo complexo e repleto de poesia, mas às vezes narrando alegorias míticas, nos encontramos com um enorme caleidoscópio de mulheres de todas as idades: Ana, Duzu, Maria, Natalina, Salinda, Luamanda, Cida, Zaíta, Bica. Enquanto algumas dessas mulheres morrem de balas achadas ou perdidas, outras fazem cooper em Copacabana antes do trabalho. Há as que choram seus maridos mortos, as que são linchadas e as que amam — seus homens ou suas mulheres. Uma aborta e depois aluga seu ventre. Outra realiza uma viagem em busca da lembrança da cor dos olhos de suas mães…
Curiosamente não tem nome a mulher que faz essa viagem, ao mesmo tempo íntima e mensurável em quilômetros, de retorno a Minas, após acordar bruscamente se perguntando de que cor eram os olhos de sua mãe, no belíssimo primeiro conto que nomeia o livro. Talvez o nome dessa personagem seja Conceição. Pelo menos, na minha liberdade leitora, foi assim que a chamei, lutando, no entanto, para não confundir a personagem com sua criadora. Isso porque Conceição Evaristo, a autora, reside hoje no Rio, onde se formou em Letras pela UFRJ e se tornou mestra e doutora em Literatura, mas nasceu e cresceu numa favela em Belo Horizonte.
Seu “Olhos d’Água” traz múltiplas histórias, repletas de intensidades por vezes brutais e doridas, protagonizadas por mulheres negras, como a autora, numa feliz conjunção entre o lugar de enunciação e a voz que artisticamente se produz. Não cabe a mim validar qualquer experiência. Na posição de leitor, o que desejo aqui é dizer como me chegaram os ecos das histórias desse livro, histórias que precisam ser lidas, pois certamente necessitavam ser escritas e, no conjunto, testemunham que cada mulher negra, sobre quem geralmente não se fala e a quem raramente se dá voz, carrega em si um universo, um infinito particular. Isso é óbvio, mas nem sempre é fácil enxergar o óbvio. Ainda mais quando ele é esmaecido pela naturalização do silêncio sobre muitas vidas.
Termino esse pequeno itinerário de leitura partilhando o assombro e o alumbramento que me trouxe o final do conto “A gente combinamos de não morrer”, por sua belíssima ode à palavra, afirmando que a escrita também pode ser um lugar.
E fui escrevendo mais e mais. (…) Na verdade, naquele momento, eu já estava arrependida e queria voltar para o meu lugar. Se é que tenho algum. Mas escrever funciona para mim como uma febre incontrolável, que arde, arde, arde… (…) Gosto de escrever palavras inteiras, cortadas, compostas, frases, não frases. Gosto de ver as palavras plenas de sentido ou carregadas de vazio dependuradas no varal da linha. Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na corda bamba da vida. Outro dia, tarde da noite, ouvi um escritor dizer que ficava perplexo diante da fome do mundo. Perplexo! Eu pedi para ele ter a bondade, a caridade cristã e que incluísse ali todos os tipos de fome, inclusive a minha, que pode ser diferente da fome dos meus.
(…)
Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro. Tenho fome, outra fome. Meu leite jorra para o alimento de meu filho e de filhos alheios. Quero contagiar de esperanças outras bocas. (…) Lá fora a sonata seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. “Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito…
[…] resenha que fiz sobre o livro de contos “Olhos d´Água“, da Conceição Evaristo, publicada em abril, foi o texto mais acessado do ano passado. Com […]
Realmente fiquei curioso… “Olhos d’agua” parece ser incrível… ótima resenha, parabéns 🙂
Caio, sim, esse livro é incrível. Muito lírico, muito poético e, ao mesmo tempo, muito real, muito “pés no chão (e os olhos vão procurar onde foi que eu me perdi)”…
Abraços! 🙂
Quando neste mundo imperfeito, formos capazes se ver com a alma despida de cor, gênero, sexualidade e tantas outras efemeridades evolutivas, teremos avançado um tanto mais. Adorei a resenha.
Luiz Alberto, fico muito feliz que tenha gostado da resenha. O livro é incrível! E, em relação ao seu comentário, talvez afirmar a particularidade da diferença seja a melhor forma de construir um mundo despido desses preconceitos, não é? Forte abraço! 🙂
Olá! tudo bom?
Não conhecia o livro, foi a primeira vez que ouvi falar nele, mas me pareceu muito interessante, do tipo de leitura que realizaria.
Parabéns e obrigada pela indicação.
Beijos.
Sim, esse livro é sensacional! Um livro super recomendado mesmo! Muito lírico e poético, ao mesmo tempo que realista e forte como um rasgo. Recomendo muito a leitura!
Obrigado pela visita e pelas palavras!
Beijos! 🙂
Que lindooo!! Adorei o post e principalmente sua introdução!! Blog lindo
Maiara, obrigado pelas palavras tão carinhosas e pela visita. Que bom que gostou daqui. Saiba que você é sempre muito bem-vinda!
Beijos! 🙂
Olá
Eu acho que já tinha visto esse livro de maneira bem superficial e acabei não prestando muito a atenção, mas agora lendo sua resenha fiquei bem curiosa com essas pequenas e singelas histórias.
Daniele, esse é mesmo um livro que merece ser lido. É ao mesmo tempo lírico e forte, poético e realista. Curiosamente, a Conceição Evaristo foi uma das figuras de destaque da FLIP desse ano. Merecidamente, aliás!
Beijos! 🙂
Oi Teófilo.
Não conhecia este livro e fiquei super curiosa. Estou confiante que um dia veremos as pessoas com os olhos do coração…
A sua resenha está fantástica. Você escreve muito bem. Tem uma escrita muito cuidada e cheia de verdade, ou seja, escreve com alma, escreve com o coração.
BeijinhoBom
Paula Cardoso
Magia nas Palavras ♥
Paula, querida, que alegria me deparar com essas suas palavras. Obrigado pelo carinho e pela atenção presente nelas. Sim, a escrita é para mim prazer e ofício, então é uma grande satisfação que com isso ela consegue transbordar alguma verdade… Obrigado por esse retorno delicado e magnífico.
Beijinhos! 🙂
Teo
Viajei no seu texto! Fiquei bem curiosa em ler o livro. Parece ser daqueles que mexem com a alma da gente, provocam um desconforto positivo e depois fazem tudo ficar mais leve.
Bjos e parabéns!
Sim, sim, Luísa! Esse livro é sensacional… É uma escrita poderosa, dessas que mexem com a gente. Nos provocam algum desconforto, mas muita esperança. É exatamente como você expressou em seu comentário…
Obrigado pelas alegria de me deparar aqui com suas palavras e saber da sua visita.
Beijos! 🙂
Sim, sim, Luísa. Esse realmente é um livro magnífico. Desses que provocam desconforto, mas também que trazem esperança… Exatamente como você falou em seus comentários…
Obrigado por suas palavras, me trazendo a felicidade de saber de sua visita por aqui.
Beijos! 🙂
Gosto de leituras que me instiguem e me tornem uma pessoa melhor, mais reflexiva e mais atenta ao nosso mundo. Acredito que Olhos d’agua deve ser um livro mto interessante…obrigada pela dica.
Tati, pelo que já li em seu blog — e eles testemunham muito do universo em seu redor –, creio que você vá gostar muito desse livro. É uma leitura ao mesmo tempo delicada e arrebatadora, poética e realista.
Beijos! 🙂
[…] segundo texto mais lido também dialoga bastante com alguns dos temas em alta em 2017: trata-se da resenha, escrita em abril de 2016 do livro “Olhos d’Água”, da Conceição Evaristo, autora destaque da Flip de 2017. Esse texto, aliás, havia sido o mais […]
Achei essa resenha linda, fiquei tocada com muita coisa que você citou, com certeza é o tipo de livro carregado de emoção e coisas lindas! Quero ler com certeza!
Primeiramente, parabéns pela escolha do tema. Reflexão relevante e bastante contemporânea. Em seguida, parabéns pela sua escrita, muito refinada. Não tenho certeza – nem informação para pensar a respeito – se as características dos indivíduos que você coloca como autores de literatura mundial são determinantes ou mesmo relevantes para esse relativo sucesso, mas a questão foi colocada. Muito obrigado por isso.
Olá boa tarde!Parabéns pela resenha .Não conhecia esse livro.Pude perceber relatos onde é abordado questões presentes em nosso cotidiano como a pobreza e a violência.É uma sugestão de leitura.
Sucesso!.Abraço!
Olá,
Não conhecia a obra, mas adorei a forma como você explanou-la, pois chega a ser cruel a realidade apresentada. Infelizmente, ainda temos esse preconceito enraizado na literatura. Parece ser uma excelente obra, que com toda certeza vai para a minha lista, pois imagino que seja capaz de me fazer pensar. Adorei, parabéns!
Beijos!
Primeiro, parabéns pela resenha, você escreve muitíssimo bem. Segundo, muito válida e necessária a sua reflexão inicial de quais critérios são determinantes para que alguma obra ou autor sejam considerados literatura universal. Admito que nunca tinha parado para pensar sobre isso, sua reflexão foi bem vinda e me parece ter muito sentido o que você escreveu. Por fim, não conhecia a autora nem esta obra, mas considerando tufo que foi dito por você sobre ela certamente entra em minha lista de leituras futuras. Obrigada pela indicação.
Esse parece ser o tipo de livro necessário a ser lido. Aquele tipo de obra que movimenta o pensamento e nos deixa a refletir. Excelente resenha.
Oiiii,
que livro legal!!! sim, minha primeira vez conhecendo ele e tendo minhas primeiras impressões sobre, e me deu uma reflexão